Quando Caetano roça a sua língua na de Camões

por Lís Barros,    27 Maio, 2025
Quando Caetano roça a sua língua na de Camões
DR
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Um ensaio sobre o que nos une e separa na língua portuguesa

Travess(i)a Atlântica 

Foi num pequeno espaço de 25 metros quadrados, em 1975 — quando Portugal respirava o primeiro ano de democracia e o Brasil se afundava nos anos de chumbo — que nasceu a Livraria da Travessa. Décadas mais tarde, em 2019, essa mesma livraria atravessaria léguas até aportar no Príncipe Real, em Lisboa. E, agora, celebra mais um aniversário. 

Para marcar a efeméride e o caráter transatlântico da Travessa, aquela amena noite de quinta-feira contou com o escritor e linguista português Marco Neves e o jornalista brasileiro Álvaro Filho. Fala-se da língua, claro. Mas não da língua como gramática — da língua como fronteira. Marco Neves explica como as línguas se multiplicam mesmo quando fingem ser uma só. Álvaro ri da confusão de quem chega e tropeça nos falsos cognatos, nos mal-entendidos, nos verbos que dizem tudo e nada ao mesmo tempo. O público escuta, interrompe com exemplos próprios — como quem participa de uma assembleia afetiva, onde cada um traz um pedaço da língua no bolso.

Fernanda Teodoro / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Fernanda Teodoro, gerente e livreira da Travessa, abriu o encontro com uma constatação: há leitores portugueses que evitam livros escritos em português do Brasil. E o inverso também acontece. A pergunta não é apenas linguística, é quase política: o que é que nos incomoda na fala do outro? Será que sentimos que alguém toma para si aquilo que julgamos ser nosso? Será, como sugeriu Mia Couto, que o Brasil se tornou “um filho maior que o próprio pai” — e Portugal, já não mais aldeia global, ressentiu-se sem saber bem o que fazer com isso no século XXI?

Levar a vida da língua ao palco

A dar vida a esta salutar discussão, alguns artistas tentam — com sucesso — fazer com que a própria língua portuguesa fale por si. A pensar nisso, Gregório Duvivier criou uma peça onde o idioma é campo de batalha e de reconciliação. Joga-se com trocadilhos, mal-entendidos e absurdos para desmontar a ideia de um «português correto» e expor as camadas políticas e culturais que moldam a fala, o que convida a rir, mas também a pensar: que língua é essa que une e separa ao mesmo tempo? Que língua é essa que carrega em si os restos de um império e a promessa de um novo mundo? O espetáculo revela a ferida — o imperialismo linguístico, a ideia de centro e periferia, a autoridade colonial que ainda ronda os dicionários. Mas revela também a cura: a vitalidade de uma língua em constante transformação, onde o erro é também invenção, e a diferença é riqueza.

Familiar e estrangeira

Se for assim, como justificar um desconforto familiar a todos os que habitam este idioma comum que leva tantas vezes a ouvi-lo como uma língua estrangeira? 

É nas semelhanças que mais se notam as diferenças. Como explicar que a palavra humedad, em espanhol, provoque menos estranheza a um português do que a palavra umidade na grafia brasileira? Ou que mais pequeno e menor acendam debates tão inflamados? É porque partilhamos a mesma raiz que as variações nos desafiam — e é exatamente aí que mora a beleza. A nossa identidade, afinal, está profundamente entranhada na palavra. 

Gregório Duvivier / Fotografia de Raquel Pellicano

Não é por acaso que o Dia de Portugal coincide com o dia de Camões. Por sinal, a métrica dos versos decassílabos dos Lusíadas só fecha quando lida com o sotaque brasileiro, com todas as vogais átonas bem desenvolvidas. 

Os Lusíadas também foi responsável por preencher as colunas de um dos jornais de maior circulação do Brasil durante a ditadura. Com a instituição do AI5, que revogou os direitos civis e endureceu a censura, muitas notícias deixaram de ser publicadas e a forma como o Estadão encontrou para colmatar este espaço foi através da publicação, numa página de destaque, de trechos da epopeia lusitana. Até à promulgação da Constituição em 1988, Os Lusíadas foi publicado duas vezes na íntegra.

Rafeira e mestiça

A língua portuguesa é, por natureza, mestiça. Nascida sob o peso de várias influências — do galego espanhol, do latim ao árabe, do francês ao tupi, passando pelo kimbundu —, foi obrigada a reinventar-se a cada passo da história. No Brasil, por exemplo, antes que o português se tornasse idioma oficial, falava-se o nheengatu, língua geral baseada no tupi, usada por colonos e povos indígenas. Era a tentativa de fazer do idioma uma ponte. Mais do que uma ferramenta de comunicação, a língua tornou-se uma forma de habitar o mundo.

Hoje, essa ponte liga 267 milhões de pessoas, sendo 80% delas brasileiras. Se o Brasil deixasse de contar, a língua portuguesa cairia para a 20.ª ou 22.ª posição na lista mundial de falantes. O que revela a sua natureza assimétrica: um idioma globalizado mais por força da colonização do que por desejo de convergência. E, no entanto, é nesse conjunto fragmentado que reside a sua maior potência. A norma, como lembra Marco Neves, é uma invenção em disputa. O centro, se existe, é múltiplo.

A ameaça do espelho

Por isso mesmo, é natural que haja resistências. Sobretudo em Portugal, onde o português do Brasil ainda é visto por alguns como ameaça. Seria esta a tal «colonização invertida»? Ou seria, pelo contrário, motivo de orgulho que a língua original tenha ganhado cores novas, cadências inesperadas, uma vitalidade irrefreável? 

Mia Couto / DR

Não é só o léxico que muda, mas também o imaginário. Expressões como “curtir”, “torcer”, “será que” ou “bagunça” atravessaram o Atlântico nas telenovelas dos anos 1980. Hoje, chegam pelo YouTube. E inquietam pais e professores. Álvaro Filho contou, com alguma dor na voz, que o filho de cinco anos, após viver quatro em Portugal, foi ameaçado pela professora com a possibilidade de chumbar o ano se não perdesse o sotaque brasileiro.

Fernando Venâncio, linguista, vai mais longe: defende que o português brasileiro e o europeu tenderão a separar-se, como aconteceu com o português e o galego. No seu livro Assim nasceu uma língua, propõe que o português, na verdade, nasceu da Galiza — uma ideia que desafia a narrativa lusitana de singularidade e providência. O sucesso do seu livro em Portugal — com oito edições — pode indicar uma mudança: estaríamos prontos para nos olharmos ao espelho e vermos, com lucidez, que a nossa língua não é só nossa?

Talvez a própria experiência migratória dos portugueses — especialmente depois da crise de 2008 — tenha ajudado a abalar o mito de excecionalismo linguístico. Talvez tenha obrigado Portugal a ver-se mais como parte de uma constelação e menos como um centro.

A Biblioteca Municipal José Saramago, em Madrid, deu um gesto simbólico recente nesse sentido. No dia mundial da língua portuguesa, recebeu 276 novos livros em português — não só de Portugal, mas também do Brasil, de Moçambique, de Cabo Verde. Porque todas essas línguas são uma só. Porque, como disse Mia Couto, ao ser adotada em África, a língua portuguesa ganhou outra musicalidade — e uma capacidade rara de traduzir culturas que não lhe pertenciam originalmente.

Ainda assim, permanece a pergunta: qual é, afinal, o problema — se é que há algum?

A resposta talvez esteja no modo como cada um de nós aprende a habitar a sua própria língua. Para alguns, trata-se de um território fixo, onde a norma deve ser respeitada, protegida. Para outros, é matéria viva — como o barro — que se molda à voz de quem a usa. Clarice Lispector e Eça de Queirós nunca precisaram adaptar-se a regras externas. Viveram no seu tempo e nele escreveram como puderam, como quiseram.

Coragem para ser muitas

O desconforto com o outro é, muitas vezes, apenas o espelho de um desconforto de quem somos. E talvez o que a língua portuguesa nos pede, neste tempo de fronteiras cada vez mais porosas, seja coragem. Coragem para aceitar que somos muitos. Que não há um português — mas vários. E que, quando Caetano roça a sua língua na de Camões, o que se ouve não é uma afronta. É uma canção.

Uma canção que ainda estamos a aprender a cantar juntos.

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